Esses dias estava relendo o poema “Dez Chamamentos ao Amigo”, de Hilda Hilst, e “olha-me de novo” é definitivamente um trecho que me captura. Em outro dia desses, ao assistir o trecho da famosa entrevista de Clarice Lispector, fui também capturada pela frase “[...] Eu ganho na releitura. É um alívio.” Ambas autoras, com escritas que tocam o íntimo e beiram - ou simplesmente acertam em cheio, aquilo que não é passível de nomeação. Com Hilda, erótica comparece tão quão o existencialismo em Clarice. Na verdade, as questões do Ser comparecem de forma latente na escrita das artistas. Ambas mulheres. Minha curiosidade levou-me a encontrar inclusive trabalhos sobre a aproximação entre a obra das autoras. E é sobre essa aproximação que arrisco comentar. Neste caso, a que eu mesma faço a partir dos meus próprios pensamentos livres e inquietações. Tais considerações a seguir não seguem absolutamente nenhum rigor a respeito da literatura e suas conceituações. O que falo é de experiência.
Como num diálogo, me peguei pensando sobre as duas frases citadas logo ao início deste comentário. “Olha-me de novo” e como uma resposta, talvez de sujeito para si próprio, “Parece que eu ganho na releitura”. O que há na releitura que oportuna tal vitória? Vitória de que? Me soa como ressignificação. E aposto mesmo nisso. Quando Clarice diz que ganha na releitura, no contexto desse trecho recortado, ela menciona sobre os professores de literatura que não a entendiam, enquanto as jovens de 17 anos se sentiam tocadas em seu âmago pelas palavras da autora. O que há nisso? O que há num pedido de uma releitura? Afinal: olha-me de novo! Se é preciso insistir, é que algo escapou de primeira e é na esperança de que possa ser percebido que se insiste: olha-me de novo! Lançando-se novamente, agora recusando qualquer aspecto pré concebido. Agora, com abertura à experiência. Com reconhecimento de campo, minha aposta é de que se fala em contato. Este, de forma genuína. “Olha-me de novo.” Quase como uma súplica. Releia-me e entenda que o que te digo, é “atrás do pensamento”. Veja que enquanto não se trata do que é concreto, ao mesmo tempo, é o real que se apresenta diante de tal mensagem.
Hilda e Clarice falam sobre Deus, sobre inferno, sobre experiência (existência) feminina. Experiência essa que não é “polida”. Ambas ultrapassam qualquer expectativa moral sobre o que é ser mulher. E enquanto mulher, penso que não há outro caminho possível para uma existência feminina autêntica, senão aquela que fura a moral. Afinal a moralidade tradicional não foi pensada para nós. Quantas vezes foi preciso que nos olhássemos novamente? O poema fala sobre um Outro, pede que esse Outro a olhe com menos altivez e atenção. Em minha leitura, escolho colocar esse sujeito em espera. Opto por instituir a mim mesma a tarefa de me revisitar. O que tem sua relação com o processo terapêutico pois, quanto esperei ser olhada por um Outro? Decido que posso olhar a mim mesma! Abaixo a régua e a presunção, para me olhar atenta. Me olho e não espero mais que um Outro me entenda. Entendo a mim mesma. A atribuição de sentido para com aquilo que nos toca simplesmente é, e é infinita. A cada releitura descobrimos novas possibilidades e produzimos novas elaborações. Não sei se o esgotamento é possível nesses casos. Acredito que não, porque diz do que se é no momento presente, e o presente está em constante atualização. Enfim… escolho me olhar de novo, e me ganho com a releitura. Que alívio!
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